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sexta-feira, 17 de outubro de 2014

ANOS SECOS

* Por Maria Rosane Vale Noronha Desidério


Queixando-se de mal estar, dona Evangelina deixou o velho corpo enrugado descansar entre as pedras do rio Puiú. E, avistou ao longe a arribada de passarinhos procurando água nas cacimbas. Tempo perdido! As cacimbas minguavam depressa debaixo daquele sol de novembro. Tudo havia minguado. O resto de água que a seca não carregou, estava protegido dessas aves, de todas as aves.

Dona Evangelina tinha essa mania de quando ia buscar água nas cacimbas do velho Puiú, deixar-se ali, meio que abandonada por si mesma para admirar o entorno. Usava esse tempo para fugir dos desesperos caseiros. Deixava-se embalar pelos pensamentos fugidios e pelo silêncio do mato. Um silêncio quebrado unicamente pela arribada de aves e pelos bichos entoando seus lamentos de sede.

Mas, ela se recordava que o sertão nem sempre foi assim. Nem sempre houve sede coletiva e compartilhada entre bichos e homens, nem sempre as plantações se perdiam, minguadas pela secura do solo ou a invasão da lagarta. Houve tempos em que o sertão era um paraíso farto e alegre. Um tempo bom em que o céu se vestia de cinza e derramava água à vontade. Era bonito ver os meninos aos pulos se banhando nas bicas ou se enlameando nas poças de água. A lua escondida e o sol intimidado admirando as nuvens carregadas. Nada podia se comparar à felicidade das chuvas, o povo colhendo feijão, milho, melancia, as mulheres e os meninos aos pés do fogão à lenha, assando espigas fornidas na brasa. Uma beleza!

Mas agora, a terra amargava três longos anos de seca, e o velho rio só possuía cacimbas de água barrenta e salobra, e o açude da vizinhança, tão grande e cheio de peixes, amargava uma morte apressada. Era triste avistar ao longe aquela imensidão de peixe morto às margens, cada vez mais encurtadas, do açude. Dona Evangelina sentia aquela tristeza arrebatar suas forças. E o sol parecia ter baixado sobre a cabeça do povo. Os sertanejos pareciam esquecidos.

Dona Evangelina estava ali, pensando nos tempos fartos, nas alegrias aos pés da trempe onde os meninos assavam milho verde. Agora as roças estavam desertas e a comida minguava. Perguntava-se diariamente porque o sertão era tão esquecido e seco. ­­­­­Era seco por gosto de Deus? Achava que não. O sertão tinha jeito, tinha sim. Faltava era o querer de quem podia fazer. O sertão era esquecido porque os homens do poder só visitavam os sertanejos em prazos de dois anos. Vinham sempre alegres, cheios de boas ideias e palavras bonitas. Dava gosto de ver. Depois se escafediam, evaporavam como fumaça. Era sempre igual. E os sertanejos minguavam ou arribavam-se para as cidades. Perdiam-se naquela imensidão. E, em sua maioria, permaneciam esquecidos. Poucos voltavam.

Dona Evangelina lamentava essa necessidade que tinham muitos sertanejos de despregar-se de seu chão e desaprender a lidar com a terra para aventurar-se em chão alheio. Aquilo era uma violência. Muitos morriam por dentro. Outros morriam de todo. Não voltavam.

Se os filhos quisessem ir embora, ela teria que deixar. Tinha medo disso, mas sentia que não tardaria a acontecer. Quase todos os filhos do sertão estavam fazendo isso — indo embora. O sertão estava secando por dentro. E o sertão era tão bonito! Mas os novatos tinham medo da seca, queriam outros caminhos, outros destinos. Se tivesse boa vontade dos homens do poder o sertão não careceria ter medo dos anos secos.  E ela não careceria ter medo de ver os filhos se enveredarem pela estrada do sul.

Agora avistava aquela arribada de aves. Logo elas iriam embora também,procurar água em outros rios. E ela voltaria para casa com o balde repleto de água salobra para encher os potes, enquanto ainda houvesse água salobra. Enquanto ainda houvesse...


* Maria Rosane Vale Noronha Desidério é aluna do 5º semestre do curso Letras Vernáculas pela Uefs.

4 comentários:

  1. Pâmella Araujo da Silva Cintra17 de outubro de 2014 às 19:10

    Excelente reflexão sobre o problema da seca. E, principalmente, a questão colocada quanto a demagogia dos candidatos, em tempo de eleição, a respeito da seca.

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