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segunda-feira, 28 de abril de 2014

O COLETIVO DAS DEZOITO HORAS

Por Maria Rosane Vale Noronha Desidério*

Foi em outubro. Não me recordo mais o dia exato. Sei apenas que foi em outubro. Eu tinha acabado de entrar em um ônibus e havia meia dúzia de pessoas em pé. Eu me fixei na região mediana do coletivo. O motorista do ônibus era um daqueles trabalhadores que se sabe, está ali por uma força do destino, mas sua insatisfação era algo profundamente notório. A cobradora era uma espécie particular de criatura. Aquelas que já prepararam o ataque verbal em seu interior e está disposta a executa-lo integralmente diante do primeiro indivíduo desavisado que intente fazer-lhe uma pergunta ou pedir-lhe para verificar a quantia de crédito existente no cartão de meia passagem.

Devo confessar que o horário em que entrei no ônibus foi um dos mais impróprios, às dezoito horas, e não tardou para que me arrependesse da infeliz decisão. Disse que quando entrei havia cerca de seis pessoas em pé, dez minutos depois não havia mais espaços no corredor para mais nenhum pé de gente. Não descreverei os horrores de tal situação, mas faço um comparativo um tanto quanto clichê, senti-me como uma sardinha enlatada. Desesperador. Mas isso em nada surpreende a ninguém, afinal, quase todos os ônibus das dezoito horas carregam essa triste sina. O que havia de acontecer depois é que seria realmente digno do adjetivo.

Logo que, finalmente, o ônibus ultrapassou o miserável congestionamento da avenida central, nos deparamos com uma rota escura e meio inabitada. Cheia de matagais e algumas casas espaças. Sempre me arrepio quando passo por esse lugar. Dizem os moradores que durante a madrugada o lugar vira palco de toda espécie de arruaça. Se eu não duvidava, agora tenho certeza. O fato é que estávamos naquele caos rotineiro, embriagados por toda a espécie de odores possíveis e inimagináveis, quando o motorista observou uma luz forte adiante. Logo, um carro preto acompanhou o ônibus e uma moto que nos seguia há algum tempo, embora ninguém tivesse notado, atravessou a frente do coletivo. É assalto! Gritou o motorista desorientado. Assalto! Depois das dezoito e antes da meia noite. Lastimável!

O anúncio repentino do motorista só não foi mais infeliz do que sua ideia desesperada de fugir. A primeira atitude deixou o povo em pânico, remexendo-se para fugir para a parte de trás do ônibus, onde certamente os bandidos não perderiam tempo e tão pouco gastariam esforço para chegar. O segundo ato. O de arrancar-se dali com uma acelerada desmedida fez pelo menos um quarto dos passageiros caírem uns sobre os outros. Uma miséria! A fuga não ultrapassou a tentativa, visto que os bandidos dilaceraram os pneus do coletivo. Depois de conseguirem dominar o ônibus eles entraram, sacaram o dinheiro das passagens e mandaram a gente descer do veículo. Todos, menos o motorista, que mal controlava as pernas. Este permaneceu no carro para as cenas finais.

Depois que todos, menos o motorista, descemos do carro, alguns de nós bem machucados, diga-se de passagem, os ladrões fizeram a limpa em nossos pertences. Patifarias! Fiquei desconsolada. Roubaram-me o dinheiro do salário, afora os machucados por todo o corpo e o pé torcido. Mas a noite estava só começando...

Os bandidos nos fizeram sentar no chão de terra perto da estrada onde ocorrera a abordagem. Depois trouxeram o coletivo e adentraram nele com uns galões de gasolina. Atearam fogo com palitos de fósforo e deixaram o motorista lá dentro. Este por sorte conseguiu pular pela saída de emergência. Cortou-se todo. Findou-se por juntar-se aos outros reféns.  

Os criminosos, sete. Fugiram. Escafederam-se pelo matagal até alcançarem o morro. Suas identidades permaneceram misteriosas. E, não houve registro fílmico, já que a câmera do coletivo estava quebrada. 

Nós ficamos um bom tempo na estrada pedindo socorro e, obviamente, ninguém parou. Até decidirmos nos arrastar pelo asfalto a fim de encontrar um posto policial. Encontramos, após uma caminhada de meia hora no breu da escuridão, talvez mais. Alguns dos passageiros, aqueles que nem ao menos podiam arrastar-se, permaneceram lá, a espera do socorro policial.

Depois de refazer-me do trauma decidi nunca mais pegar nenhum ônibus, mas logo vi que tal decisão estava em desacordo com minhas opções de volta para casa. Vi que encará-los era inevitável. Sorte teve o motorista, ou talvez nem tanto! Ele conseguiu finalmente deixar aquele emprego. A queda rendeu-lhe tantas fraturas que ganhou o benefício da aposentadoria antecipada.


* Maria Rosane Vale Noronha Desidério é estudante do curso de Letras Vernáculas na Uefs.

5 comentários:

  1. Pâmella Araujo da Silva Cintra29 de abril de 2014 às 12:00

    Bela crônica. A cada dia essa pequena se supera! Cronista de sucessOO! ;)

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  2. Ow! muito obrigada, Pâmela por suas palavras de incentivo, pelo apoio e pelo carinho.

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  3. Boa tarde Rosane, caminhei pelos caminhos do seu texto, e reflete as imagens de todo o ambiente da história passada se ele nos permite viajar por caminhos onde nos remete a imagens e fatos pra mim é o suficiente, parabéns pela dança das imagens em texto.(Denival Matias)

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  4. Obrigada, Daniel Matias. Fico grata pelo seu comentário e feliz que meu texto tenha proporcionado a você viajar pelas imagens aí encontradas. obrigada.

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