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sexta-feira, 11 de outubro de 2013

Se eu não existisse...


Por Luciene de Queiroz Costa*

Não se sabe ao certo onde e quando ele nasceu.  Hoje eu apenas tenho uma certeza: que em seus primeiros dias de vida teve a mãe por perto para lhe dar o precioso alimento – leite materno. Nada mais! Não sei como vivia, ou se tinha irmãos, onde dormia, do que brincava, do que gostava... Negro, raquítico, grandes olhos, pernas compridas e finas.

Talvez por conta da sua aguçada curiosidade de criança, ele tenha resolvido, naquela tarde de verão, ir brincar nas ruas do bairro do Jardim Cruzeiro, sem sequer imaginar que o seu destino iria mudar completamente e para sempre.

Assim que chegou à calçada viu um objeto estranho parado perto de onde estava. Era gigante! Jamais havia visto tal coisa em sua breve vida. Era vermelho com tiras laterais pretas, possuía rodas e vidros que brilhavam a luz do sol. Um medo enorme tomou conta do seu pequenino ser. O que era aquela coisa? O que fazia aquela coisa? Aproximou-se e percebeu que o gigante estava imóvel. Resolveu investigar um pouco mais. Subiu nele, examinou cada detalhe, seu cheiro, sua cor e viu que aquela coisa, além de gigantesca, tinha esconderijos incríveis por dentro!  Era tudo muito novo, parecia um labirinto com várias entradas e saídas, maquinário estranho, cheiros fortes, ambiente quente. A excitação daquelas descobertas o fez esquecer-se do tempo que passava e da noite que se aproximava. Era tudo tão magnífico, tudo tão deliciosamente fascinante que nada mais importava...

A noite chegou e a escuridão tomou conta de tudo. Ele não conseguia ver nada em volta de si. Mas que importância isso tem? Afinal ele estava dentro do gigante e sentia-se orgulhoso de sua conquista! Foi tudo muito rápido quando começou a ouvir vozes e o gigante – agora acordado - passou a se mover. Seu medo cresceu dentro do peito e ele só teve chance de se agarrar para que não caísse ou fosse devorado por aquele barulho ensurdecedor! Deve ter gritado, pedido por socorro e se arrependido de ter entrado ali sem autorização. Tudo em vão. O gigante andava e balançava e ignorava aquela intrusa presença dentro de seu interior. Foram terríveis os minutos que se passaram até que o gigante parasse novamente em frente a uma casa verde. O pequenino estava em choque. Imóvel. Sua respiração estava ofegante. Sua voz mal conseguia pedir para ser escutada, mas ela foi ouvida em algum momento desse interminável percurso.

Enquanto ele tentava raciocinar e entender o que estava acontecendo, o gigante se abriu e ele pode enfim ver que estava num ambiente totalmente novo. Continuava em pânico. Um rapaz, um pouco mais velho que ele e tão raquítico quanto, o retirou de lá. Eles não se falaram. Nenhuma palavra foi dita. Ambos estavam assustados com aquele inusitado encontro. 

A dona da casa verde, que vivia em sua janela à espera ninguém sabe de quê, viu a cena. Não queria participar dela, apenas assisti-la como sempre fazia. Ela já tinha problemas demais, e ver a vida alheia correndo lá fora a fazia esquecer-se da sua inútil existência. Inacreditavelmente a vida dela também estava prestes a mudar naquele momento e para sempre quando o rapaz virou-se para ela e disse: “Moça, quer ficar com ele pra você? Se não quiser deixe-o na rua mesmo pois eu vim de longe, estou indo para a igreja e não posso levá-lo”.  Agora eram três os assustados – o rapaz, a dona de casa e o negrinho. “Com que direito este rapaz se dirige a mim? Como foi capaz de tamanha frieza ao perguntar tal coisa? Que espécie de ser humano é esse que age assim tão secamente? O que vou fazer com este ser indefeso?” Foram tantos sentimentos e dúvidas numa fração de segundos difícil de imaginar, mas ela, ainda atônita, acabou por acolher o pequeno.

A primeira coisa que fez foi oferecer um pouco de água e comida. Depois pensou o que faria com aquele ser feio, subnutrido e negro. É preciso que se diga que não era racismo, mas é que ela conhecia um pouco do mundo e sabia do preconceito que existe. Já era tarde, arrumou um cantinho pra ele dormir e esperou que como mágica aquele problema se resolvesse no novo dia que surgiria. Ela tinha medo, já havia enfrentado a família para poder acolher em sua casa outra vítima do abandono e achava que não seria capaz de fazer isso novamente.

O tempo foi passando... o pequenino foi se desenvolvendo, ganhando saúde corpo e beleza, conquistando a todos com suas gracinhas infantis. Recebeu o apelido carinhoso de “Estrupício”, mas ele nem parecia se importar com isso, afinal havia vencido o gigante e agora tinha uma família carinhosa, cuidados e mimos que muitos de sua raça jamais terão!

Estrupício hoje é o xodó da casa verde, muito carinhoso, doce, educado. Aquele gatinho feio e raquítico ficou no passado. Ele se transformou num lindo gato preto que, juntamente com sua dona, acolhe todos os outros que chegam perdidos e abandonados como ele um dia chegou!

A dona da casa verde hoje tem consciência de que sua vida não é inútil. Ela aprendeu que a vida é muito maior que uma janela e que sempre existirão gigantes para enfrentar! Aprendeu que vitórias e derrotas fazem parte da caminhada! E, se perguntarem a ela o que seria do século se ela não existisse, a resposta seria imediata: “do século eu não sei, mas sei que a vida de dezenas de felinos que ajudei não teria o mesmo final feliz que tiveram!”.


Luciene de Queiroz Costa é aluna do curso de Letras Vernáculas e moradora da Casa Verde desde 2006.

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