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domingo, 17 de agosto de 2014

A COMÉDIA PARA LER UM BRASIL

Por Maria Rosane Vale Noronha Desidério*


Há muitas perguntas ecoantes no cenário literário. Aqui, porém, tentaremos responder uma que se refere especificamente ao teatro. Por que o teatro de comédia teve mais êxito do que o dramático? Para responder tal pergunta é necessário compreender a formação brasileira, é necessário saber de que tipo de Brasil estamos falando, para só então podermos responder essa pergunta acerca do teatro de comédia.

Quando a primeira nau portuguesa, trazendo consigo os jesuítas, atracou em terras desconhecidas da futura Ilha Vera Cruz, o Brasil, avistou além das belezas naturais uma população aborígene que não compreendia a língua portuguesa e nenhum outro dialeto europeu ou oriental. E, para estabelecer contato, os portugueses precisaram utilizar algum tipo de linguagem para se comunicarem com aquele povo. Foi neste momento crucial que o teatro deu seus primeiros passos em terras brasileiras. Depois deste primeiro contato com os colonizadores, o Brasil vivenciou grandes transformações, tornando-se colônia portuguesa, império e depois uma nação republicana.

Além das transformações políticas, o Brasil ganhava uma população muito heterogênea com indígenas, africanos, franceses e holandeses (em menor número), portugueses e brasileiros portugueses, ou seja, os filhos de portugueses que não sabiam bem quem eram, se brasileiros ou portugueses — lembremo-nos de Gregório de Matos com seu ranço de fidalgo e sua voz ainda ecoando o colonizador. Era uma população que ainda não compreendia sua identidade, e havia uma imensa necessidade de compreendê-la, mas o Brasil de Gregório ainda possuía uma ligação umbilical com a sua colônia. Esta ligação estava em tudo, inclusive nas artes, e isto dificultava sobremaneira a identificação da singularidade de uma nação em nascimento. Era preciso compreender o povo, identificar o modo de ser genuinamente brasileiro, mas pouco se sabia além das notícias da corte. A arte e, especificamente, a literatura poderia ser um caminho, mas seus primeiros passos, embora se perceba desde o início traços que a diferenciava da europeia, estiveram muito presa a esta, principalmente às literaturas portuguesa e francesa.

Machado de Assis, ao analisar o então estado da literatura no romantismo em seu artigo “Instinto de nacionalidade”, afirmou que esta ainda não estava madura; era, pois, ainda adolescente. Ao referir-se sobre o teatro, Machado concluiu sem singeleza nem meias palavras que este simplesmente não existia no Brasil; não havia nenhum teatro nacional, apenas “reticências”.

As palavras de Machado não querem dizer que não se fazia teatro no Brasil, mas que não se fazia teatro nacional. Este, para ser nacional, não necessitava de textos sobre índios ou sobre as belezas da mata atlântica, afinal, segundo Machado, um escritor não precisa citar detalhadamente a região de sua origem para ser nacional. Esta nacionalidade estará em tudo que ele escrever. E mesmo ao escrever temas universais se pode ser nacional. O problema então era que o teatro que se fazia no país estava impregnado da prosódia portuguesa, não possuía um estilo que se pudesse chamar de nacional, apesar dos avanços que João Caetano imprimiu no modo de interpretar, permitindo maior realismo. 

O teatro produzido no Brasil carecia de uma autenticidade nacional. Faltava-lhe uma identidade que pudesse afirma-lo, de fato, Brasileiro. E esta busca por identidade atravessou um longo caminho até chegar à década de 1950 a 1960, quando o Teatro de Arena lança em seu palco um autor nacional através da peça Eles não usam black tie, de Guarnieri. Uma ousada ideia que trouxe os temas, a linguagem e o cotidiano tipicamente nacionais ao tablado do teatro brasileiro. 

Todo este cenário brasileiro de transformações políticas busca por se firmar como nação e a necessidade de se conhecer e compreender as transformações pelas quais estava passando o Brasil. Seja no campo político, intelectual e artístico ou de formação do povo efetivamente como nação brasileira, o país necessitava de um teatro que fosse além da reflexão. Era preciso ler e compreender aquele povo, era preciso investigá-lo, observar os modos e reproduzi-lo. Era preciso um teatro que se prestasse a falar do povo comum, do plebeu, porque era preciso conhecer quem era o povo que formava o Brasil. E, diferentemente da tragédia que tem seu foco no individuo, a comédia focaliza o coletivo, refletindo sobre ele. 

A comédia amplifica os tipos humanos: a moça casadoura, o político de conduta duvidosa, o avarento, a viúva, o homem da roça, a fofoqueira, o juiz de paz. Ao fazer isto, permite que se volte com um olhar mais agudo para estes tipos humanos que, embora pintados com certo exagero pelo teatro, são personagens rotineiros, fazem parte da sociedade. Assim, se poderá compreender a cultura daquele povo e perceber essa singularidade coletiva tipicamente brasileira que o particulariza no cenário universal. 

É interessante observarmos ainda que a comédia, ao voltar-se para o subalterno, refletirá um estado de Brasil enquanto colônia portuguesa e quiçá como colônia imaginária de outros poderosos que vieram depois. Veja, enquanto colônia o Brasil era, inevitavelmente, subalterno à sua metrópole. Então, como um herói cômico, o Brasil buscava superar suas dificuldades, cortar sua ligação umbilical com a metrópole para enfim poder andar com os próprios pés.

Por esse motivo, a comédia teve melhor aceitação no Brasil do que a tragédia. Embora se tenha escrito peças trágicas de valor, estas não se adequaram aos anseios e necessidades de uma nação em formação, uma nação em busca de sua própria identidade ainda que fosse impossível desvencilhar-se por completo da herança que recebera de sua ex-metrópole. O novo país tinha a árdua missão de absorver todas as informações culturais de um povo híbrido, vindas de povos e nações diversas para unir-se aos nativos e formar uma identidade híbrida e, apesar disso, única e singular.


* Maria Rosane Vale Noronha Desidério é aluna do 4º semestre do curso Letras Vernáculas pela Uefs.

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