Por Maria Rosane Vale Noronha Desidério*
Os passarinhos estão piando lá fora, no
telhado ao lado e talvez sobre o meu também. É bom ouvi-los! Sabemos que já
passou das cinco da manhã e que o sol se espreguiça, abrindo os olhos para o
novo dia.
– É
hora de levantar! Alguém gritando lá do fundo. A cozinha já fervilha. Mamãe e
vovó preparam o café da manhã para os homens, todos trabalhadores do campo. É
dia feliz. A noite foi de chuva e a terra está molhada e cheirosa. Dia gostoso,
preguiçoso. Bom para dormir mais. O problema é que no sertão se deve acordar
cedo. A vida começa às cinco horas, talvez antes. Certamente antes para os mais
velhos ou apressados.
Eu sinto um solavanco em minha rede, é
mamãe reclamando minha demora. – Vá
buscar água Lisbela os potes estão secos, uma miséria! Você dorme demais. Eu
durmo demais?! Essa é boa! Mamãe tinha essa mania de achar que quando o sol sai
do esconderijo, ninguém pode mais dormir, é preguiça. E gente preguiçosa no
campo é uma lástima! Era o que pensava mamãe nos tempos da vida na roça. Ela
era assim, mas o vovô era ainda mais enérgico. Acordava antes do galo, do sol e
dos passarinhos. Quando mamãe e vovó despertavam, ele já vinha chegando do
curral com a vasilha cheia de leite. Dormia quando o sol se apagava e acordava
antes do primeiro raio de sol apanhar o chão. Vovô sempre foi assim. Era um
homem típico do sertão. Era “um forte” como bem dizia Euclides.
E eu quando acordava com os sopapos de
mamãe em minha rede, corria para cumprir minhas tarefas matinais. Ia ao açude
buscar água para encher os potes da cozinha, depois ia buscar a lenha para o
fogo e, por fim, mamãe me fazia varrer a casa, a calçada grande da frente da
casa e o quintal. Quando acabava mamãe ainda me mandava lavar a louça do café.
Uma lástima! Eram panelas sujas de carvão do fogão a lenha. Eu sempre as lavava
reclamando, soltando mil justificativas para não ser obrigada a fazer aquilo.
Parecia uma advogada em dia de julgamento. Uma advogada, não. Uma promotora
acusando mamãe. Mas claro que esse discurso ocorria somente entre os limites de
meu pensamento. Se mamãe ouvisse... Hum! Daria em mim, com certeza, alguns
piparotes na cara. Preferia sempre por segurança e para conservação de minha
integridade física o discurso mental. Era muito mais seguro!
Eu sempre fui assim. Mania de imaginar o
mundo, o sertão. O sertão para mim era maior que o mundo. Um dia o mundo
engoliu o sertão e ele ficou pequeno. Foi mamãe quem me disse. Mas ainda era
grande o sertão. Eu andava, andava... Olhava do alto do morro e não conseguia
enxergar o fim. O sertão para mim ainda era enorme.
Meu passatempo preferido na vida era
embrear-me na mata. Fugir a léguas da cozinha, dos serviços. Eu voltava para o
açude. Era bom ficar sozinha lá, ouvindo o grito da cigarra até não percebê-la
mais de tanto ouvi-la. Já viu? Às vezes a gente ouve ou vê tanto uma coisa que
para de percebê-la mesmo ela estando ali. Lembro bem dos pés de cajarana, imbu,
manga e seriguela que vovô plantou no sangrador do açude. Eu ia pra lá. Subia em uma das árvores, de
preferência a de cajarana por ser mais fácil. E, com as mãos, o vestido e
qualquer outro suporte cheio de frutas ia refazer meu café da manhã. Era uma
festa, particular!
Mamãe reclamava das minhas fugas, mas era tão
bom! Sinto saudades! Saudades de tudo. O tempo, às vezes, engole a gente, nos
faz crescer sem se perceber, nos faz perder certas vivências sem que prestemos
atenção. Deve ser estratégia da vida para não ficarmos agarrados, sem querermos
nos desprender de tempos bons que, inevitavelmente, precisamos deixar em fazes
passadas da vida. É lástima!
O campo foi minha infância. Uma perfeição.
Certo que as panelas sujas de carvão ficam de fora das lembranças animadas, mas
pensar na mamãe entrançando o meu cabelo em noite de luar, ouvindo a vovó
contar causos do passado é doce. Lembro que à noite nos reuníamos na calçada. O
vovô, o papai e alguns tios e primos riam à beira de uma fogueira, assando
milho ou qualquer outra coisa de comer. As mulheres se amotinavam na calçada
ouvindo a vovó ou falando todas ao mesmo tempo. Dificilmente se podia
distinguir as falas de cada uma.
Era muito bom. Mas o tempo passa
ligeiramente e muda tudo de lugar. Eu tive que caminhar, seguindo os seus
mandos. E troquei o cheiro da chuva pela
fumaça dos carros, os pés de seriguela, cajarana, manga e imbu pelos
supermercados, as noites de luar ouvindo a vovó e as mulheres pelos ruídos da televisão,
dos livros, do mundo. Mas o cheiro da chuva nunca saiu de minha alma, as mãos
da mamãe entrançando os meus cabelos permanecem em minha memória, e as frutas
do pé ainda cheiram em meu nariz, ainda as degusto em minha memória, em minha
alma. A infância passa, mas os cheiros, os carinhos, as brincadeiras e
repreensões nunca saem, nunca se despedem de verdade. Mesmo que o tempo
amorteça nossos sentidos e corra desprendendo-os das lembranças. De repente a
gente vê que nada se perdeu, tudo permanece dentro, lá dentro de nós,
eternamente...
Aos que nunca se desprendem da memória porque
nela guardam os cheiros da vida.
* Maria Rosane Vale Noronha Desidério cursa o 7º smestre de letras vernáculas (2015.2) na Uefs.