Queixando-se de mal estar, dona Evangelina deixou o velho corpo
enrugado descansar entre as pedras do rio Puiú. E, avistou ao longe a arribada
de passarinhos procurando água nas cacimbas. Tempo perdido! As cacimbas
minguavam depressa debaixo daquele sol de novembro. Tudo havia minguado. O resto
de água que a seca não carregou, estava protegido dessas aves, de todas as
aves.
Dona Evangelina tinha essa mania de quando ia buscar água nas cacimbas
do velho Puiú, deixar-se ali, meio que abandonada por si mesma para admirar o
entorno. Usava esse tempo para fugir dos desesperos caseiros. Deixava-se
embalar pelos pensamentos fugidios e pelo silêncio do mato. Um silêncio
quebrado unicamente pela arribada de aves e pelos bichos entoando seus lamentos
de sede.
Mas, ela se recordava que o sertão nem sempre foi assim. Nem sempre houve
sede coletiva e compartilhada entre bichos e homens, nem sempre as plantações
se perdiam, minguadas pela secura do solo ou a invasão da lagarta. Houve tempos
em que o sertão era um paraíso farto e alegre. Um tempo bom em que o céu se
vestia de cinza e derramava água à vontade. Era bonito ver os meninos aos pulos
se banhando nas bicas ou se enlameando nas poças de água. A lua escondida e o
sol intimidado admirando as nuvens carregadas. Nada podia se comparar à felicidade
das chuvas, o povo colhendo feijão, milho, melancia, as mulheres e os meninos
aos pés do fogão à lenha, assando espigas fornidas na brasa. Uma beleza!
Mas agora, a terra amargava três longos anos de seca, e o velho rio só
possuía cacimbas de água barrenta e salobra, e o açude da vizinhança, tão
grande e cheio de peixes, amargava uma morte apressada. Era triste avistar ao
longe aquela imensidão de peixe morto às margens, cada vez mais encurtadas, do
açude. Dona Evangelina sentia aquela tristeza arrebatar suas forças. E o sol
parecia ter baixado sobre a cabeça do povo. Os sertanejos pareciam esquecidos.
Dona Evangelina estava ali, pensando nos tempos fartos, nas alegrias
aos pés da trempe onde os meninos assavam milho verde. Agora as roças estavam
desertas e a comida minguava. Perguntava-se diariamente porque o sertão era tão
esquecido e seco. Era seco por gosto de Deus? Achava que não. O sertão
tinha jeito, tinha sim. Faltava era o querer de quem podia fazer. O sertão era
esquecido porque os homens do poder só visitavam os sertanejos em prazos de
dois anos. Vinham sempre alegres, cheios de boas ideias e palavras bonitas.
Dava gosto de ver. Depois se escafediam, evaporavam como fumaça. Era sempre
igual. E os sertanejos minguavam ou arribavam-se para as cidades. Perdiam-se
naquela imensidão. E, em sua maioria, permaneciam esquecidos. Poucos voltavam.
Dona Evangelina lamentava essa necessidade que tinham muitos sertanejos
de despregar-se de seu chão e desaprender a lidar com a terra para aventurar-se
em chão alheio. Aquilo era uma violência. Muitos morriam por dentro. Outros
morriam de todo. Não voltavam.
Se os filhos quisessem ir embora, ela teria que deixar. Tinha medo
disso, mas sentia que não tardaria a acontecer. Quase todos os filhos do sertão
estavam fazendo isso —
indo embora. O sertão estava secando por dentro. E o sertão era tão bonito! Mas
os novatos tinham medo da seca, queriam outros caminhos, outros destinos. Se
tivesse boa vontade dos homens do poder o sertão não careceria ter medo dos
anos secos. E ela não careceria ter medo
de ver os filhos se enveredarem pela estrada do sul.
Agora avistava aquela arribada de aves. Logo elas iriam embora também,procurar
água em outros rios. E ela voltaria para casa com o balde repleto de água
salobra para encher os potes, enquanto ainda houvesse água salobra. Enquanto
ainda houvesse...
* Maria Rosane Vale Noronha Desidério é aluna do 5º semestre do curso
Letras Vernáculas pela Uefs.
Parabéns, Maria.
ResponderExcluirExcelente reflexão sobre o problema da seca. E, principalmente, a questão colocada quanto a demagogia dos candidatos, em tempo de eleição, a respeito da seca.
ResponderExcluirObrigada, Pâmela.
ResponderExcluirObrigada, Jó.
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